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JOÃO TRAPALHÃO

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Laranja Mecânica e Outros Fantasmas

Publicado a 26 de abril, 2025

Ontem, numa confeitaria, no Porto. A minha filha queria uma laranja.

Em vez de chamarmos logo a senhora da mesa, decidimos complicar: explicámos-lhe que podia ir ela própria pedir a laranja. Sozinha. Bastava levantar-se, atravessar umas cadeiras, e dizer, com o melhor "por favor" que conseguisse.

Ela levantou-se. Deu três passos. Pensou melhor. Voltou para trás e sentou-se. Deixámo-la. Nem palavras de encorajamento, nem chantagem emocional. Só aquele silêncio de quem espera para ver o que acontece.

Passados uns minutos, respirou fundo, armou-se em adulta e foi. Pediu a laranja como se fosse uma coisa que se faz todos os dias. A senhora sorriu, trouxe a fruta, e pronto — evento histórico concluído.

Eu fiquei ali, meio babado, meio a tentar disfarçar. Lembrei-me de todas as vezes que a timidez me travou em miúdo — e, não querendo enganar ninguém, em adulto também. E, durante uns segundos, tive aquela sensação meio parva de que a minha filha estava a desfazer nós antigos do sótão da minha infância e adolescência.

Mas rapidamente me lembrei: ela não está cá para resolver as minhas coisas. Não é responsabilidade dela curar o que ficou pendurado em mim. Esperar isso de um filho é dar-lhe um peso que não merece — e, mais do que isso, é impedir-lhe o espaço para fazer o seu próprio caminho.

A verdade é que resistir à vontade de fazer tudo por ela é difícil. Está gravado em nós: proteger, resolver, garantir que nada corre mal. Só que essa proteção permanente acaba por ser uma armadilha. Para ela, porque lhe rouba autonomia, aprendizagem, e a sensação de conquista. Para mim, porque me deixaria a carregar para sempre a ilusão de que sou responsável por tudo o que lhe acontecer na vida. Ainda não estou totalmente preparado para a deixar fazer muitas coisas sozinha — mas isso tem muito mais a ver comigo do que com a capacidade ou preparação dela.

À noite, na pergunta do costume — "O que gostaste mais hoje?" — respondeu, sem hesitar: "Da laranja."

Claro que sim. Quem precisa de parques, piscinas ou passeios de barco quando se tem uma conquista destas? A primeira de muitas, espero eu.