
Entre a Formiga e a Cigarra
Acordei às três da manhã para dar um biberão e não consegui voltar a adormecer.
Primeiro, porque o meu sono é assim, mesquinho. Depois, porque quando estava quase, quase a adormecer, umas duas horas depois de ter andado às voltas na cama e pela casa, a minha filha, já completamente desperta, veio pedir-me para ver a Porquinha Peppa.
Acho que um dos principais benefícios dos autocolantes “Bebé a Bordo” no carro — que não tenho — é o facto de informar as outras pessoas de que vai ali um adulto fragilizado, que provavelmente dormiu mal e que merece toda a empatia que o resto do mundo tiver para lhe oferecer.
Mas a verdade desta vida cruel é que os lugares de estacionamento reservados dos shoppings só nos servem quando temos a criança, efetivamente, a bordo. Não há privilégios para os pais exaustos, a menos que tragam consigo a prova do crime.
Devia haver um sinal ou uma t-shirt especial que pudéssemos usar, que assinalasse ao resto do mundo: está aqui alguém que precisa de paciência e que o deixem passar à frente. Só porque sim. Sem perguntas.
Voltando ao dia que começou às três da manhã, agora que são dez e já cheguei ao escritório, não consigo evitar a ideia de que deveria haver alguma disciplina na escola que nos preparasse para a tareia que é a exigência de nos mantermos produtivos nestas circunstâncias. Se há uns minutos estava a tentar lembrar-me como é que se trancava a porta do carro, como é que é suposto que agora seja capaz de executar processos mentais mais sofisticados do que jogar ao jogo do galo?
Se, por um lado, é essencial não me esquecer que não devo tomar grandes decisões de vida quando mergulhado em contextos que, ainda que extremos, são pontuais, a parentalidade convida, inevitavelmente, à reflexão: o que é que eu quero da minha existência? O que eu estou a fazer está a levar-me para onde desejo ir? O que é que, de facto, importa? A privação de sono é um terreno fértil para a filosofia.
Confesso que o cansaço e a parentalidade, passe a redundância, me retiraram alguma ambição profissional imediata. Ou melhor, recentraram o foco dessa aspiração. Se antes me imaginava num caminho muito orientado pela minha carreira, vejo agora, cada vez mais, uma carreira orientada pelo que mais valorizo na minha vida: a minha família, os meus amigos e o meu sono.
O meu objetivo, que já foi o objetivo standard de muita gente — estudar, trabalhar, aprender, subir na hierarquia, eventualmente lançar o novo Facebook, jogar golfe a meio da semana e por aí fora — agora é poder ir buscar as minhas filhas o mais cedo possível, à melhor escola possível.
Não deixo, claro, de sentir também que esta revisão na minha ambição pode ser passageira e não quero tomar decisões agora que me venha a arrepender no médio/longo prazo. Porque, no fim do dia, quando esta fase — em que o que eu mais antecipo é ir com a minha família ao supermercado preparar o jantar que vamos fazer juntos enquanto ouvimos música na cozinha — passar, e a vida, inevitavelmente, vier exigir as filhas que me emprestou, estarei aqui eu — menos cansado, igualmente curioso e com vontade de continuar a desenvolver-me.
Entre a formiga e a cigarra, existem as mães e pais exaustos que precisam de uma pausa e de um bocadinho de música, mas que não se podem esquecer que o futuro vem aí para todos.